Entrevista a Jéssica Ilfu-Soi, finalista da WAF


Depois das entrevistas com Ana Leça, Beatriz Narciso, Elizabeth Prentis e Flávia Costa, seguimos agora para a quarta artista finalista da 5ª edição da Women in Art Fellowship (WAF). Hoje é a vez de conhecer melhor o percurso, as referências e a visão artística de Jéssica Ilfu-Soi.


WAF — Podes contar-nos um pouco sobre ti e sobre o teu percurso até agora?

Jéssica Ilfu-Soi – Sou artista multidisciplinar nascida em Angola e enraizada em Portugal desde a infância. A minha identidade é marcada por uma herança plural — angolana, cabo-verdiana, santomense e macaense — que influencia a forma como percebo o mundo e a minha prática artística. Crescer entre culturas deu-me consciência da multiplicidade, do trânsito entre pertenças, e essa experiência reflete-se hoje no meu trabalho, onde exploro ancestralidade e espiritualidade como territórios de regeneração e metamorfose. Comecei a minha prática em 2022, de forma autodidata, como resposta a uma vontade e necessidade de criar algo com as minhas próprias mãos e identidade. Aluguei um espaço, inicialmente partilhado com uma colega, que se tornou o meu atual estúdio na Ajuda. Nos primeiros meses enfrentei várias dificuldades estruturais, que me levaram a realizar renovações profundas. O que prometia ser um lugar de liberdade criativa acabou por ser adiado e substituído por obras extensas, burocracia e logística. O estúdio demorou 14 meses até ter eletricidade, e nesse tempo comecei a dar os primeiros passos no escuro, metafórica e literalmente. Comprometi-me a moldar os 12,5kgs de barro que tinha até conseguir criar algo. Nesse processo fui-me descobrindo, vergando-me perante a matéria soberana que é o barro, aprendendo a escutá-lo, respeitá-lo e a dialogar com ele. Hoje posso dizer que é um portal para expressão, exploração e autodescoberta e através dele encontrei coragem e confiança para explorar outros materiais que também me ensinam e moldam. Em novembro de 2024 apresentei a minha primeira exposição a solo, Sacred Matter, na galeria ArtRoom, que se tornou num santuário, num útero sagrado. Nesse projeto explorei também a vertente da curadoria, concebendo a exposição como um todo, de dentro para fora. A receção do público superou as minhas expectativas e abriu portas importantes, como a exposição coletiva na galeria OOCA e a mostra Elements, com curadoria da THE CURATED Lisbon, em fevereiro de 2025. Mais recentemente participei na Lisbon Design Week, um marco significativo no meu percurso, onde abri pela primeira vez as portas do meu estúdio ao público e apresentei o meu segundo corpo de trabalho, PRIMAL/PRIMORDIAL.

WAF — Qual foi o maior desafio que encontraste na tua carreira artística até agora e como o superaste?

Jéssica Ilfu-Soi – O maior desafio foi conciliar trabalho (conhecido como 9 to 5) com a criação, sendo que o segundo dependia totalmente do anterior. Esse equilíbrio constante revelou-se quase impossível e foi algo que nunca cheguei a dominar na totalidade, e a arte acabava muitas vezes sacrificada. Fazer gestão da culpa, quando não estava a criar, e do cansaço quando tinha de encontrar espaço e força para fazer ambos, deu aso a um ciclo de frustração, dúvida, sentimento de fracasso e inadequação. No entanto, uma rede de apoio manteve-me firme no meu propósito e impediu-me de desistir. Persistência, resiliência e o foco na minha visão a longo prazo foram cruciais para me manter enraizada. Hoje percebo que os desafios são parte natural de qualquer percurso, e que o que realmente define a trajetória é a forma como aprendemos a gerir cada um deles.

WAF — Que experiências consideras terem sido mais determinantes na tua evolução enquanto artista?

Jéssica Ilfu-Soi – A minha primeira exposição a solo, Sacred Matter, foi um marco transformador. Foi aí que percebi a dimensão que a minha prática podia alcançar, não apenas em termos estéticos, mas também espirituais e sensoriais. Criar uma experiência imersiva que foi recebida como um espaço de contemplação e reflexão confirmou-me que o meu trabalho tem uma função que ultrapassa o objeto artístico, ele cria portais de encontro e ressonância. Momentos de dúvida e silêncio criativo também foram determinantes, foram nesses períodos que aprendi a ouvir-me com mais paciência e compaixão, a confiar na intuição e a aceitar que a vulnerabilidade também é parte da evolução artística.

WAF — Quais são as tuas principais referências artísticas ou culturais?

Jéssica Ilfu-Soi – Na escultura e na instalação, Anish Kapoor, Isamu Noguchi, Henry Moore e Tunga, pela forma como expandiram os limites da matéria e do espaço. Na performance e na relação entre corpo e espiritualidade, Marina Abramović e Yayoi Kusama. Também encontro inspiração na linguagem visual e sensorial de Solange Knowles e na abordagem interdisciplinar de Kim Mupangilaï.

WAF — Que artistas, movimentos ou acontecimentos mais influenciaram a tua prática?

Jéssica Ilfu-Soi – O mundo interior, o subconsciente como território de estudo seja na psicologia, na espiritualidade, na arte. O cosmos e tudo o que não se vê são forças constantes na minha prática, assim como a experiência humana como canal, como passagem.

WAF — Há alguma obra ou momento na tua vida que consideres ter sido um ponto de viragem criativo?

Jéssica Ilfu-Soi – A minha escultura Catharsis foi a primeira peça que me fez sentir visível para mim mesma. Foi como se tivesse desbloqueado uma voz interior que até então estava oculta. Costumo descrevê-la como uma “obra-gatilho”, porque foi ela que alterou algo dentro de mim, quase como se tivesse reconfigurado a química do meu corpo e algo tivesse mudado, despertado. Foi a materialização de ideias que até então não tinha conseguido transpor para a matéria.

WAF — O que te motiva a criar e a persistir no teu trabalho artístico?

Jéssica Ilfu-Soi – Necessidade de expressão, sentir que é através da criação que consigo comunicar de uma forma que não consigo verbalmente. É onde encontro um lugar de liberação, cura e autoconhecimento. Criar permite-me construir pontes com o mundo à minha volta, com os meus ancestrais e servir de veículo na criação de espaços de expressão e descoberta para outras mulheres. É também uma forma de transcender limites, aqueles que me imponho e aqueles que vêm do exterior.

WAF — Como defines o propósito do teu trabalho enquanto mulher nas artes?

Jéssica Ilfu-Soi – Ser mulher nas artes, para mim, é um ato de resistência e também de libertação, é assumir uma voz que muitas vezes foi silenciada, e transformá-la em algo palpável, que dialoga com o mundo e traz uma visão por vezes pouco explorada. Acredito que a minha prática também contribui para expandir a representação das mulheres no campo da escultura, um território ainda marcado por referências predominantemente masculinas. O meu trabalho procura propor outras narrativas, mais fluidas, corporais e espirituais, onde a vulnerabilidade e a força coexistem e são celebradas.

WAF — Que mensagem ou reflexão pretendes transmitir com a tua obra?

Jéssica Ilfu-Soi – Quero abrir espaço para a contemplação, para o diálogo interior e para a experiência sensorial. A minha obra convida o público a sentir, a tocar, a questionar, a mergulhar no invisível, seja o subconsciente, o cosmos ou o corpo interior. Se existe uma reflexão central, é a de que tudo está em constante metamorfose: a matéria, o corpo, o tempo, a identidade. Gostaria de despertar no público a consciência de que somos parte desse fluxo maior.

WAF — Como costumas organizar o teu processo criativo? Tens algum método ou rotina preferida?

Jéssica Ilfu-Soi – O meu processo criativo é orgânico e intuitivo, mas assenta sempre numa base de disciplina e de escuta. Permito-me ouvir o que as peças querem dizer, que formas querem tomar. Muitas vezes parto de uma imagem mental, de uma emoção ou até de um gesto corporal que me guia para a forma. Canalizo o que estou a sentir e transformo isso em combustível, energia que deposito na peça em construção. Faço esboços muito livres, mas é sobretudo na relação direta com a matéria que o trabalho acontece. Não sigo uma rotina rígida, mas procuro criar blocos de tempo em que me desligo do exterior e me dedico inteiramente ao estúdio.

Ly Takai

WAF — Que técnicas, materiais ou meios gostas mais de explorar na tua prática?

Jéssica Ilfu-Soi – O barro é central para mim, é a matéria que abriu o meu caminho artístico e continua a ser o núcleo da minha pesquisa. Nos últimos tempos tenho também explorado o cabelo, pela sua carga simbólica. Paralelamente, tenho expandido a minha prática para uma dimensão mais visual, através do uso de som e vídeo, que me permitem criar mais camadas multisensoriais.

WAF — Que papel têm a colaboração ou a interdisciplinaridade no teu trabalho?

Jéssica Ilfu-Soi – O meu trabalho parte muitas vezes de uma investigação interior, mas ganha outra dimensão quando colocado em diálogo com outras linguagens, seja através do cruzamento com outros artistas, da curadoria, da música, da performance ou do design. Acredito que a arte, quando interliga disciplinas, tem um maior potencial de impacto, porque cria experiências mais complexas e abrangentes.

WAF — De que forma esta bolsa poderá transformar ou impulsionar o teu percurso artístico?

Jéssica Ilfu-Soi – A bolsa representa não só um reconhecimento, mas também um impulso concreto para expandir o meu trabalho em escala, ambição e impacto. Permitirá investir em materiais e meios de produção mais exigentes, além de me dar tempo e condições para aprofundar a pesquisa conceptual. Sobretudo, será um ponto de viragem na minha trajetória, ajudando-me a consolidar a minha presença no circuito artístico e a projetar a minha prática para contextos diversos.

WAF — Quais são as tuas expectativas em relação ao impacto deste projeto no contexto nacional/internacional?

Jéssica Ilfu-Soi – Nacionalmente, desejo contribuir para enriquecer a cena artística com uma prática que valoriza a imersão e o diálogo entre ancestralidade e futuro. Internacionalmente, acredito que o projeto pode criar pontes, pela sua universalidade: todos temos raízes, todos formamos parte do Todo coletivo. Quero que a obra seja recebida como uma experiência transformadora, independente do contexto cultural.

WAF — Onde te vês daqui a cinco anos enquanto artista?

Jéssica Ilfu-Soi – Vejo-me a consolidar a minha presença enquanto escultora e criadora de experiências, com obras que continuem a transmitir a minha energia e busca pela autenticidade na minha prática, tanto em Portugal como internacionalmente. Gostava de criar espaços de escuta e impulso da expressão para outras artistas em início de percurso artístico. Imagino-me também a colaborar com artistas de diferentes áreas, explorando projetos interdisciplinares. Sobretudo, vejo-me fiel à essência que me trouxe até aqui, a criar a partir de uma necessidade profunda de expressão, de cura e de conexão.

Gina Spinelli

Com esta quarta entrevista damos continuidade à série dedicada a dar voz às finalistas da 1ª edição da Women in Art Fellowship. A WAF nasce da colaboração entre o Freeport Lisboa Fashion Outlet, o Vila do Conde Porto Fashion Outlet, a Portugal Manual e a SOTA – State of the Art, e conta com a artista Joana Vasconcelos como madrinha da sua primeira edição.

Convidamos-te a acompanhar de perto este percurso: segue a WAF no Instagram e descobre mais sobre o trabalho de Jéssica Ilfu-Soi.

Sabe mais sobre a bolsa WAF neste artigo no blog.