Entrevista a Vânia Reichartz, finalista WAF

Depois das entrevistas com Ana LeçaBeatriz NarcisoElizabeth PrentisFlávia CostaJéssica Ilfu-SoiJoana Dionísio, Joana Paraíso e Patricia Pettitt. seguimos agora para a quinta artista finalista da 1.ª edição da Women in Art Fellowship (WAF). Hoje é a vez de conhecer melhor o percurso, as referências e a visão artística de Vânia Reichartz.

WAF — Podes contar-nos um pouco sobre ti e sobre o teu percurso até agora?

Vânia – Sou artista têxtil e o meu trabalho nasce do entrelaçar de memória, identidade e transformação. Desde cedo, no gesto manual, encontrei uma linguagem íntima, uma forma de reinventar-me: cada fio que se desenrola nas minhas mãos dá corpo às emoções e oferece voz ao indizível.

Aprendi a tricotar com a minha mãe e, ainda criança, compreendi que o têxtil não era apenas técnica, mas linguagem vital. Uma superfície onde inscrevo perguntas, cicatrizes e possibilidades, um espaço de liberdade sempre em expansão.

Na Escola Artística António Arroio senti o verdadeiro chamamento do tear, inspirada por artistas como Magdalena Abakanowicz e Sheila Hicks, que reclamaram o fio como matéria escultórica, política e transformadora. Mais tarde, a formação em artes visuais e cenografia, aliada a diferentes experiências culturais, trouxe-me novas camadas de escuta e multiplicidade, revelando o profundo valor do olhar feminino ao traduzir vida em arte.

Onze anos na Alemanha ampliaram horizontes em projetos e instituições coletivas. A maternidade e a experiência da perda devolveram-me ao tear com um gesto mais íntimo, trazendo à minha prática a consciência do tempo, da fragilidade e da delicadeza como matéria criativa.

Hoje trabalho a partir de uma yurt no meio da natureza, onde cada peça nasce como diálogo entre matéria, silêncio e memória. A minha prática é simultaneamente criação e cuidado: um gesto feminino inscrito no têxtil como ato de resistência, de cura e de transformação do mundo.

WAF — Qual foi o maior desafio que encontraste na tua carreira artística até agora e como o superaste?

Vânia – O maior desafio da minha carreira tem sido encontrar equilíbrio entre o chamamento da criação e as exigências da vida quotidiana. Esse lugar de tensão ensinou-me que até as pausas podem germinar; que por vezes é no intervalo, no silêncio breve, que o gesto artístico se fortalece. Aprendi que a persistência não nasce de grandes conquistas, mas de pequenos gestos repetidos — como pontos que, juntos, se tornam teia.

Outro desafio foi aprender a transformar experiências íntimas em narrativas com ressonância universal. Percebi que não precisava expor-me em excesso para ser verdadeira. O que importa é a capacidade de transmutar fragilidade em símbolos partilháveis, de converter a dor em matéria criativa, e a dúvida em combustível.

Superar estes desafios foi, afinal, abraçar a minha condição de mulher e artista: tecer vida e criação com o mesmo fio. Descobri que a vulnerabilidade pode ser força, e que é nesse espaço de delicadeza transformada em potência que a minha voz artística encontra o seu lugar no mundo.

WAF — Que experiências consideras terem sido mais determinantes na tua evolução enquanto artista?

Vânia – As experiências de viver entre culturas, a maternidade e a perda foram determinantes na construção da minha linguagem. Cada uma trouxe camadas de densidade emocional, novas formas de olhar o corpo e a sua memória, e uma urgência renovada na criação.

A maternidade deu-me o gesto da generosidade e da paciência, a consciência de que criar pode ser também cuidar. 

A perda trouxe gravidade e silêncio, ensinou-me que cada peça pode ser, ao mesmo tempo, território de luto e de celebração daquilo que já não está. 

Viver entre culturas abriu-me à multiplicidade, ao diálogo entre diferenças, ampliando o alcance da minha voz.

Essas experiências transformaram-se em matéria artística: são elas que me permitem criar obras que não se fecham no íntimo, mas se abrem ao coletivo, um espaço onde memória e fragilidade se transmutam em força poética e em gesto de afirmação feminina.

WAF – Quais são as tuas principais referências artísticas ou culturais?

Vânia – A minha inspiração nasce tanto do saber manual ancestral como da vida quotidiana. Vejo beleza nos gestos pequenos, repetitivos e silenciosos, eles tornam-se matéria poética no meu trabalho, um fio que tece sentidos inesperados.

Sou atravessada por artistas que expandiram os limites do têxtil, mas também pela literatura, pela música, pelo silêncio e pelo que espreita entre o visível e o invisível. Caminho no espaço onde a herança do fazer manual dialoga com a sensibilidade contemporânea.

Mas é sobretudo na poesia da vida comum que encontro a minha matriz criativa. Nos pormenores quase invisíveis, descubro força e resistência. O meu trabalho é um modo de reconhecer e reinscrever esses gestos, historicamente ligados às mulheres, como linguagem artística de afirmação, delicadeza e transformação.

WAF – Que artistas, movimentos ou acontecimentos mais influenciaram a tua prática?

Vânia – A minha prática encontra ressonância em artistas que transformaram o têxtil em linguagem de memória, corpo e matéria. Magdalena Abakanowicz, Sheila Hicks, Aurelia Muñoz, Mrinalini Mukherjee e Tadek Beutlich abriram caminhos para a tridimensionalidade, para a força escultórica da fibra, para o pulsar orgânico do fio — uma herança que reconheço como radical e emancipadora.

Hilma af Klint e Ernst Haeckel expandiram o meu olhar para os padrões da natureza, onde ciência e espiritualidade se entrelaçam em geometrias que parecem vindas do invisível. Sonia Delaunay deixou-me o legado da cor como movimento e energia vital, capaz de transformar ritmo em forma.

Louise Bourgeois, mestra do íntimo, ensinou-me que o corpo e a memória podem ser convertidos em território sensível e radical. Nela encontro a prova de que a vulnerabilidade pode ser arma, e de que a criação, no gesto feminino, se torna espaço de resistência, revelação e liberdade.

WAF – Há alguma obra ou momento na tua vida que consideres ter sido um ponto de viragem criativo?

Vânia – Obras como Mother and Father marcaram profundamente a minha trajetória, tornando-se um verdadeiro ponto de viragem criativo. A reação intensa do público revelou-me a força do diálogo entre forma, técnica e cor, abrindo novos caminhos e projetando o meu trabalho a outra escala. Também Amarrador foi determinante, não apenas pela experimentação técnica, mas pela visibilidade e procura que despertou em torno das minhas criações. Mais tarde, a série Whitered assinalou uma viragem escultórica, ao explorar a tridimensionalidade das fibras e a sua capacidade de evocar o movimento da cerâmica.

Mas a transformação mais íntima veio da maternidade e da experiência da perda. Trouxeram-me silêncio e ausência, mas também afeto, paciência e um espaço inesperado de criação. Foi nesse território que memória, amor e dor se entrelaçaram, revelando a fragilidade como matéria fecunda e o têxtil como espaço de nascimento e renascimento, num movimento constante.

WAF – O que te motiva a criar e persistir no teu trabalho artístico?

Vânia – O que me motiva a criar é uma pulsão vital, uma respiração que não posso interromper. A arte é o meu modo de compreender o mundo e de me reinventar dentro dele: uma ponte entre o quotidiano e o sagrado, entre o visível e o invisível.

Mesmo nos intervalos de silêncio, nos gestos pequenos e quase ocultos, a compulsão criadora permanece. É um diálogo incessante entre matéria, gesto e pensamento, uma tradução de emoções, memórias e experiências.

Persistir é abraçar esse chamado profundo mesmo diante das dúvidas, transformar fragilidade em forma, instabilidade em potência. É reconhecer que a prática têxtil, enraizada numa herança de gesto feminino, é também um ato de resistência e afirmação.

No fundo, criar não é apenas profissão: é a minha essência. É um impulso de partilha e reinvenção contínua, um modo de devolver ao mundo a delicadeza, a força e a poesia da vida.

WAF – Como defines o propósito do teu trabalho enquanto mulher nas artes?

Vânia – O meu propósito enquanto mulher nas artes é dar corpo e visibilidade às experiências femininas tantas vezes silenciadas. O têxtil é a minha língua silenciosa: amorosa, curativa, resiliente e subversiva. Uma linguagem que honra gestos domésticos invisibilizados e os transforma em presença artística e política.

Através dos fios escrevo narrativas do quotidiano, o lar, os gestos repetitivos, os silêncios e as memórias que moldam identidades. Cada obra é uma escrita íntima que converte fragilidade em força e dá voz ao que parecia insignificante.

Procuro criar peças que estabeleçam pontes entre passado e presente, memória e reinvenção, convidando o espectador a refletir sobre o papel da mulher. Mas não apenas refletir: quero reinscrever essa presença no mundo, revelando as múltiplas camadas que compõem a experiência feminina e afirmando a criação como espaço de resistência e transformação.

WAF – Que mensagem ou reflexão pretendes transmitir com a tua obra?

Vânia – A minha obra é um convite a olhar o quotidiano feminino como território sagrado. Quero revelar a força dos gestos simples , o silêncio dos rituais, a repetição paciente, a delicadeza quase invisível que sustenta a vida. No ínfimo, reconheço o infinito.

Procuro reinscrever na arte gestos historicamente femininos, transformando-os em presença política e sensível. No têxtil encontro um espaço de memória e de futuro, de cura e de reinvenção.

Cada peça é, para mim, um ato de preservação e de revelação: o íntimo tornado coletivo, o invisível tornado visível. A vida doméstica da mulher, tantas vezes silenciada, afirma-se aqui como linguagem artística, transfigurada em corpo, em beleza e em resistência. Mais do que retratar, a obra lança uma reflexão: como o gesto feminino pode transformar o mundo através da delicadeza e da potência criadora.

WAF – Como costumas organizar o teu processo criativo?

Vânia – Trabalho num espaço de recolhimento: uma yurta no coração da floresta, onde a natureza não é cenário, mas presença constante. O silêncio, a luz filtrada pelas árvores, o som dos animais e a calma profunda envolvem-me e abrem caminho para um estado de espírito fértil e transformador.

O meu processo nasce da intuição. A emoção surge antes da forma, a cor impõe-se antes do desenho. Deixo que a mão escute a matéria e que o fio me conduza, revelando histórias que, muitas vezes, eu própria desconhecia guardar. É um caos intuitivo que se vai organizando através dos fios. 

Quando uma ideia germina, aprofundo a pesquisa, recolho referências visíveis e invisíveis, e construo uma linguagem que une impulso e reflexão. Nesse diálogo, cada obra ganha consistência, carregada de significados que ultrapassam o gesto.

Cada peça é testemunho de que a intuição, quando acolhida, se transforma em matéria viva, uma voz que une corpo, memória e espírito no ato criador.

WAF – Que técnicas, materiais ou meios gostas mais de explorar?

Vânia – No meu trabalho, parto de práticas ancestrais que carregam camadas de memória: a tapeçaria manual, os nós, o bordado. São gestos que nasceram no espaço doméstico e que, para mim, se erguem como linguagem artística e política. Cada ponto exige tempo e entrega, e nesse labor encontro a voz silenciosa de tantas mulheres que me antecederam.

Escolho, sobretudo, fibras naturais e recicladas como o linho, a lã, o algodão, excedentes de fábricas, novelos esquecidos, restos herdados de outras mãos. Acredito que cada material traz consigo uma história. Dar-lhes nova forma é também um gesto de continuidade e reinvenção. Sempre que trabalho com a corda, faço questão de adquirir material português, mantendo um vínculo com o território.

Nos últimos anos, tenho tentado criar peças maiores e interessa-me explorar ambientes imersivos, sensoriais e coletivos. Quero que o público não apenas observe, mas toque, sinta, caminhe e habite a obra. O têxtil deixa então de ser objeto para se tornar experiência.

WAF – Que papel têm a colaboração ou a interdisciplinaridade no teu trabalho?

Vânia – Embora muitos momentos do meu processo sejam solitários e de recolhimento, reconheço na colaboração uma força essencial. O diálogo com outras disciplinas como artes visuais, literatura, música ou artesanato, expande o horizonte do meu trabalho, transformando o têxtil num meio vivo de comunicação capaz de se ligar à palavra, ao som, ao gesto e ao espaço.

As experiências que tive em figurinos e cenografia mostraram-me como a obra pode dialogar com o corpo, a performance e o ambiente. Esse olhar expandido ilumina hoje o meu desejo de criar instalações imersivas, onde o público entra não só como espectador, mas como parte viva da experiência.

Colaborar é, para mim, também um ato de resistência: um modo de construir redes, valorizar saberes diversos e dar lugar ao coletivo na arte contemporânea. Ao cruzar vozes e técnicas, a obra deixa de ser apenas minha, torna-se partilhada, múltipla, aberta, sempre em transformação.

WAF – De que forma poderá esta bolsa impulsionar o teu futuro artístico?

Vânia – A Women in Art Fellowship representa, para mim, muito mais do que um apoio financeiro: é um catalisador capaz de transformar decisivamente o meu percurso artístico. Este impulso permitirá consolidar a investigação que venho desenvolvendo no campo do têxtil, expandindo-a para novos contextos de diálogo internacional, e afirmando o lugar legítimo do fazer manual feminino dentro da arte contemporânea.

Com esta bolsa, poderei unir maturidade criativa e alcance profissional, aprofundar discursos estéticos e políticos, e ampliar a visibilidade de um trabalho que reinscreve as vozes femininas na história da arte. Será também uma oportunidade de construir redes com outras artistas e de criar pontes entre práticas ancestrais e linguagens experimentais, entre intimidade e coletividade.

Mais do que investimento material, esta bolsa tem um valor simbólico profundo: afirmar que fibra é cultura, que o gesto feminino é linguagem, que a arte é território de presença e resistência. Este apoio dará não só futuro ao  meu projeto mas também abrirá caminho para que outras vozes e histórias femininas encontrem corpo, permanência e reconhecimento.

WAF – Quais são as tuas expectativas em relação ao impacto deste projeto no contexto nacional e internacional?

Vânia – As minhas expectativas assentam na força do têxtil como território de diálogo, resistência e futuro.

No contexto nacional, desejo que o projeto contribua para reposicionar o fazer manual feminino como parte essencial da cultura portuguesa, reforçando a ligação entre tradição e contemporaneidade. Quero dar visibilidade às práticas inviabilizadas e criar espaços onde memória, gesto e palavra se tornem presença e reconhecimento. Oficinas e conversas com comunidades locais terão um papel central neste processo, promovendo pontes intergeracionais e sociais.

No plano internacional, ambiciono inserir a arte têxtil portuguesa no diálogo global da arte contemporânea, evidenciando o poder simbólico e político de práticas historicamente marginalizadas. A Women in Art Fellowship será meio de expansão, de trocas artísticas e culturais, abrindo caminhos de colaboração e ressonância com outras mulheres e outros territórios.

Mais do que um projeto expositivo, o projeto pretende ser elo vivo entre o local e o global, entre passado e futuro. Uma obra que nasce de memórias íntimas, mas se projeta como ato coletivo e universal, reafirmando a potência criadora das mulheres no panorama artístico contemporâneo.

WAF – Onde te vês daqui a cinco anos enquanto artista?

Vânia – Daqui a cinco anos, vejo-me numa fase plena de maturidade criativa, com uma linguagem têxtil reconhecida pela sua força estética e pela sua dimensão política e poética. Quero aprofundar o potencial do têxtil como meio vivo de contar histórias pessoais e coletivas, ligadas à experiência feminina, à memória e à transformação.

Imagino o meu trabalho expandido em instalações imersivas, sensoriais e participativas, onde o público não apenas veja, mas toque, caminhe e habite a obra. Quero continuar a construir pontes: entre tradição e contemporaneidade.

Daqui a cinco anos, desejo que o fio seja ainda ponte entre gerações e culturas, entre o íntimo e o universal. Vejo-me como artista consolidada, mas sobretudo como guardiã e reinventora de uma prática que pertence a muitas mulheres, e que quero inscrever de forma duradoura no panorama artístico nacional e internacional.

Com esta penúltima entrevista damos continuidade à série dedicada a dar voz às finalistas da 1ª edição da Women in Art Fellowship. A WAF nasce da colaboração entre o Freeport Lisboa Fashion Outlet, o Vila do Conde Porto Fashion Outlet, a Portugal Manual e a SOTA – State of the Art, e conta com a artista Joana Vasconcelos como madrinha da sua primeira edição.

Convidamos-te a acompanhar de perto este percurso: segue a WAF no Instagram e descobre mais sobre o trabalho de Vânia Reichartz

Sabe mais sobre a bolsa WAF neste artigo no blog.