Entrevista a Vera Fonseka, finalista WAF

Depois das entrevistas com Ana LeçaBeatriz NarcisoElizabeth PrentisFlávia CostaJéssica Ilfu-Soie Joana DionísioJoana Paraíso, Patricia Pettitt e Vânia Reichartz. Seguimos agora para a ultima artista finalista da 1.ª edição da Women in Art Fellowship (WAF). Hoje é a vez de conhecer melhor o percurso, as referências e a visão artística de Vera Fonseka.

WAF — Podes contar-nos um pouco sobre ti e sobre o teu percurso até agora?

Vera Fonseka – Nasci na Estónia e vivo em Portugal desde 2003. Talvez o “bichinho” da pintura tenha vindo da minha avó paterna — uma mulher criativa e humilde, que pintava aguarelas com as flores
do seu jardim. Quando não havia flores, criava-as com linhas: bordava, tricotava, costurava.
Cresci a vê-la transformar o pouco em beleza. Em casa dos meus pais havia catálogos de arte lindíssimos, e na casa da minha avó materna, lembro-me de ficar fascinada com os livros de gravura japonesa. Passava horas a folhear imagens de Bosch e Salvador Dalí — mundos estranhos, intensos, que me perturbavam e encantavam ao mesmo tempo. A Estónia era, na altura, um país pequeno, com pouco mais de um milhão de habitantes, e nem sequer tínhamos um museu de arte contemporânea. Hoje já há, felizmente. Mas em miúda, o desenho não teve muito espaço. Tentei o teatro em adolescente, mas o apoio era escasso, vamos chamar-lhe assim. O sonho adormeceu.

Só em 2005, quando adoeci, voltei a pegar nas tintas. Foi um gesto inexplicável e estranho
na altura. A ideia de “não ser artista” já estava bem instalada, mas em 2008, com o apoio
do meu marido e outras pessoas próximas, entrei em Pintura na FBAUL.

Desde então, a arte tornou-se o meu chão e o meu caminho.

WAF — Qual foi o maior desafio que encontraste na tua carreira artística até agora e como o superaste?

Vera Fonseka – Talvez o mais difícil para mim tenha sido aprender a lidar com o “não” — ou com os
silêncios, as promessas vagas, datas de exposições que nunca chegaram a acontecer. No
início, tudo isso feria muito. Hoje, percebo que este caminho, feito de desvios e incertezas, ensinou-me: não só sobre pintura e novos modos de fazer, mas também sobre nós — sobre a nossa capacidade de escuta, de espera, de resistência a frustração.

Aprendi, com o tempo, a não desistir do que não acontece logo. Aprendi a organizar melhor
a minha prática, a planear, a sonhar com mais estrutura e menos ansiedade. E sobretudo, a
manter o foco naquilo que me move verdadeiramente. Porque a pintura continua sempre lá
— fiel, exigente, sempre a desafiar-me a crescer.

WAF — Que experiências consideras terem sido mais determinantes na tua evolução enquanto artista?

Vera Fonseka – A experiência que considero mais determinante está a ser o doutoramento em Pintura que actualmente realizo. Pela exigência, estrutura e rigor que impõe, tem-me ajudado a olhar
para a pintura como um exercício de observação, compreensão e análise, onde o processo
importa tanto como o resultado. Antes escrevia pouco sobre o meu percurso artístico. Agora, tenho desenvolvido uma abordagem mais autocrítica e estruturada. Já costumava trabalhar com perguntas
orientadoras ou temas para cada série, mas o doutoramento tem-me levado a aprofundar
mais, a repensar decisões e a procurar mais rigor e coerência no que faço. Sinto que é neste
momento que esse amadurecimento está realmente a acontecer.

Foi igualmente marcante acompanhar e investigar a evolução dos trabalhos de artistas e professores que admiro, compreendendo as suas mudanças ao longo de décadas de prática. Entre eles, destaco Ana Vidigal, Hilma af Klint, e antigos professores da FBAUL, como Isabel Sabino, Rui Serra e Manuel Botelho. Este contacto com percursos tão distintos fez-me perceber que o caminho artístico é longo, requer investimento constante, pesquisa contínua e uma postura simultaneamente humilde e curiosa. É esse espírito investigativo que procuro manter, consciente de que a aprendizagem e o crescimento são permanentes.

WAF — Quais são as tuas principais referências artísticas ou culturais?

Vera Fonseka – As minhas referências culturais são claramente marcadas pela minha origem e pela
experiência vivida de desenraizamento. Nasci na União Soviética e, sem sair do lugar, aos 10
anos passei a viver noutro país — a Estónia independente — com outra língua, nova bandeira, moeda estranha, hino que me encantou a primeira, e uma nova narrativa nacional que me dizia que eu não pertencia àquele local. Acho que posso dizer que a minha infância foi feita de rutura e transição, de uma identidade suspensa, que me obrigou a permanecer até aos 27 anos de idade, apátrida – alguém sem nacionalidade. Essa experiência deixou marcas na forma como penso e faço arte. Cresci entre diferentes línguas e culturas, entre imagens que me chegavam dos catálogos de arte ocidental e das gravuras japonesas que havia em casa da minha avó e o peso de uma história política que me atravessava sem que eu a pudesse compreender na altura. Essas imagens — passaportes, mapas, carimbos (apostilhas, vistos, etc.), símbolos nacionais e culturais — tornaram-se o meu vocabulário visual. As minhas referências culturais são fragmentos de histórias – são imagens do que ficou por dizer, do que foi cortado, teve que ser traduzido e sobreposto ao nível psíquico. Tal como o meu trabalho — feito de camadas, recortes e colagens — também a minha identidade artística é construída a partir dessa experiência de não-pertença e reconfiguração constante.

WAF — Que artistas, movimentos ou acontecimentos mais influenciaram a tua prática?

Vera Fonseka – Ao longo da última década, fui acumulando referências artísticas que, como eu, trabalham a colagem, a cor, as camadas e a repetição — tanto como linguagem visual como modo de
pensar. Inspiro-me em artistas que transformam a superfície da tela num lugar de conflito, memória e reinscrição identitária. Julie Mehretu é importante para mim, pela forma como traduz fluxos humanos e tensões sociais. Também me tocam profundamente artistas que exploram feridas culturais e traumas históricos — como Adriana Varejão, William Kentridge, Anselm Kiefer, Boltanski ou Doris Salcedo — por serem capazes de dar forma visual ao que é difícil de explicar. E fascinam-me artistas como El Anatsui, Yinka Shonibare ou Takashi Murakami, que desafiam as fronteiras entre tradição e globalização, memória local e global, o que remete para o sentimento de pertença vs. não pertença – tema central no meu trabalho. A artista que mais me marcou foi, sem dúvida, Ana Vidigal. Lembro-me com absoluta nitidez da primeira vez que vi o seu trabalho — as colagens expostas na Galeria 111, e depois na Feira de Arte de Lisboa — e do impacto profundo que provocaram em mim. Na altura, a colagem era para mim uma brincadeira de miúdos. Ver como ela transformava fragmentos de imagens, papéis e memórias em linguagem artística foi uma revelação. A sua obra ensinou-me que aquilo que é íntimo ou descartado pode ser convocado com forç poética e política. E depois, a forma como ela trabalha a temática do tempo… é maravilhoso, simples e mágico ao mesmo tempo.

WAF — Há alguma obra ou momento na tua vida que consideres ter sido um ponto de viragem criativo?

Vera Fonseka – Sim — a obra Entre fragmentos, criada em 2024, foi um ponto de viragem. É composta por uma tela de grandes dimensões e um livro de artista, e marcou o momento em que comecei a aprofundar a colagem como linguagem central no meu trabalho. A relação entre a pintura e a origem dos fragmentos passou a ganhar uma importância maior: comecei a interrogar de onde vinham as imagens, os restos, os papéis que escolhia colar — e porquê. Foi também nesta obra que o rosa começou a surgir, como uma cor carregada de memória e ambiguidade identitária. Desde então, o meu processo tem vindo a ganhar outra profundidade — mais atento, mais consciente, mais meu. Acho que passei a observar mais o meu próprio processo, não sei explicar isso ainda…

WAF — O que te motiva a criar e a persistir no teu trabalho artístico?

Vera Fonseka – A resposta mais imediata é simples: se não pintar, fico com mau feitio — como dizem as
pessoas mais próximas. A prática artística é, para mim, uma necessidade vital; é o que me organiza por dentro. Não consigo viver sem pintar, sem ver exposições, sem estar em contacto com a arte. O que mais me move é o caminho interior que tenho de percorrer para que a pintura aconteça — um processo de escuta, descoberta e transformação. Ao longo do tempo, apercebi-me de que há vivências e temáticas que é difícil traduzir em palavras com precisão. Experiências como a não pertença, identidades fragmentadas e deslocadas, ou memórias de transições históricas e geográficas, resistem à descrição habitual, comum. É impossível um retornado comunicar plenamente a quem não viveu essa
experiência o que significou regressar das ex-colónias; é difícil a um pied-noir explicar a um francês o peso da perda da terra onde nasceu, dos costumes e da paz que ali conheceu; tal como é complexo explicar o que é ser apátrida — viver sem representação de um Estado, sem direitos de cidadão (vamos viajar, e não existe uma embaixada que nos represente, como no filme Terminal com Tom Hanks), numa suspensão de identidade, ou num limbo. Motiva-me encontrar códigos visuais que funcionem como metáforas para estes estados múltiplos do self — camadas que se sobrepõem, colidem e se reorganizam — procurando criar imagens que transmitem sensações e abrem espaço para que o público aceda, de
forma intuitiva, a experiências que dificilmente cabem na linguagem verbal.

WAF — Como defines o propósito do teu trabalho enquanto mulher nas artes?

Vera Fonseka – O meu trabalho enquanto mulher nas artes é, antes de tudo, um lugar de liberdade. De
poder dizer, com as minhas imagens, o que tantas vezes foi silenciado ou diminuído noutras épocas. Ser mulher artista é, para mim, não separar a criação da vida real.

WAF — Que mensagem ou reflexão pretendes transmitir com a tua obra?

Vera Fonseka – A minha obra nasce de uma vontade de integrar, de costurar partes soltas até formar um
corpo com sentido. A pintura, tal como a colagem, oferece-me um espaço para procurar unidade — como uma construção em movimento, feita de camadas, repetições e revisitações das experiências pessoais e momentos históricos do tema que trabalho. O que procuro transmitir é a ideia de que é possível reorganizar (reinscrever) o que nos marca — memórias, relações, sentimento de pertença ou de não pertença — e, com isso, criar um lugar interno, subjetivo, onde habitar. Trata-se de um exercício de reconciliação: entre tempos, entre identidades, entre aquilo que herdamos e aquilo que escolhemos para
continuar o caminho pessoal.

WAF — Como costumas organizar o teu processo criativo? Tens algum método ou rotina preferida?

Vera Fonseka – Costumo começar pela preparação dos elementos visuais, escala, seleção cromática e códigos que vão compor cada peça — fragmentos de colagem, desenhos, carimbos, elementos de serigrafia, gestos ou camadas de acrílico. Depois escrevo, faço pequenos esboços no papel ou no Procreate, embora curiosamente nunca tenha o hábito de os guardar. Talvez porque o processo se revele mais no fazer do que no planear. Testar combinações é importante, mas muitas vezes o percurso é mesmo processual — começa por experimentação e vai-se revelando no próprio gesto. Raramente trabalho numa só peça; gosto de ter vários trabalhos em simultâneo, o que me permite circular entre
estados de atenção diferentes. Ultimamente tenho começado pelas cores e códigos visuais — especialmente gamas de rosa e verde — e penso nas camadas que poderão compor a tela. Sei, de forma geral, o que quero integrar, mas só ao longo do processo decido a ordem, a opacidade e as relações
entre os elementos.

WAF — Que técnicas, materiais ou meios gostas mais de explorar na tua prática?

Vera Fonseka – Trabalho sobretudo com colagem, acrílico, tinta da china, bordado, carimbos e técnicas
mistas sobre tela, papel ou tecido. Gosto de combinar materiais convencionais com elementos que tragam memória — papéis antigos, tecidos usados, fragmentos de objetos ou imagens recolhidas. Interessa-me explorar como esses materiais, quando sobrepostos, cortados ou reposicionados, criam novas relações simbólicas, por vezes remetendo para regras e rituais próprios.

WAF — Que papel têm a colaboração ou a interdisciplinaridade no teu trabalho?

Vera Fonseka – Até agora, a colaboração teve um papel discreto na minha prática. Só recentemente
comecei a desenvolver um projeto em conjunto com outra artista. Estamos a preparar a nossa exposição que irá inaugurar a 12 de Dezembro no MU.SA, e tem sido uma experiência nova e estimulante. No passado, experimentei fazer graffiti em dupla — gostei do processo, mas acabei por seguir caminho na pintura em tela, que é onde me sinto mais enraizada. Quanto à interdisciplinaridade, também está a emergir agora de forma mais consciente. Este ano comecei a integrar tecidos e serigrafia nas minhas obras, e estou a planear juntar madeira em peças que espero concluir até setembro. Ainda estou numa fase de exploração, mas sinto que estas cruzas entre técnicas e materiais abrem novas possibilidades, sem perder o foco na pintura como eixo central.

WAF – De que forma esta bolsa poderá transformar ou impulsionar o teu percurso artístico?

Vera Fonseka – A minha expectativa com esta bolsa é ganhar mais visibilidade e ter mais contacto com
diferentes realidades e perspetivas no meio artístico, o que me permitirá compreender melhor as dinâmicas atuais do mercado da arte contemporânea. Vejo-a como uma oportunidade para olhar para o meu trabalho de forma mais crítica e construtiva, identificando com maior clareza onde ele se enquadra e quais os contextos e circuitos onde poderá ter maior impacto. Espero também que me ajude a afunilar o foco da minha prática, definindo com mais precisão estratégias e objetivos, para que as minhas escolhas futuras sejam mais conscientes e alinhadas com o meu percurso e identidade artística. Gostaria que esta experiência abrisse portas a novas colaborações e parcerias, criasse redes de contacto relevantes e estimulasse um diálogo mais informado com o público e a comunidade
artística, enriquecendo tanto o meu trabalho como a forma como ele é apresentado e comunicado.

WAF — Quais são as tuas expectativas em relação ao impacto deste projeto no contexto nacional/internacional?

Vera Fonseka – A minha expectativa é que, através da bolsa WAF, este projeto possa ganhar força e chegar a mais pessoas, dentro e fora de Portugal. Vejo esta iniciativa como uma oportunidade
importante para dar visibilidade ao trabalho de mulheres artistas, criar ligações e aprender
com outras experiências. Espero que seja um momento de crescimento, de partilha e de troca de ideias, que me ajude a olhar para o meu trabalho com mais clareza e a encontrar melhor o meu lugar no
contexto artístico.

WAF — Onde te vês daqui a cinco anos enquanto artista?

Vera Fonseka – Identifico-me completamente com este caminho que é a prática artística — um labor
exigente, feito de pesquisa, experimentação e perseverança, mas também de momentos de descoberta e satisfação. Daqui a cinco anos, espero continuar a ter a força, a energia e a motivação necessárias para seguir por este percurso, aprofundando a minha linguagem plástica e explorando novas possibilidades técnicas e conceptuais – neste sentido não faço ideia o que será a inha pintura daqui a 5 anos, mas estou curiosa – que caminhos irei tomar. Gostaria de consolidar vínculos com uma galeria privada na Península Ibérica que me permita apresentar, de forma regular, exposições individuais, bem como manter a participação em projetos coletivos desafiantes. Vejo-me também a continuar a escrever e a refletir sobre pintura e arte contemporânea (comecei este ano e estou a gostar muito desta
forma de pensar a pintura), contribuindo para o pensamento crítico e para tornar os processos artísticos mais acessíveis e compreensíveis.

E assim chegamos ao fim desta série dedicada a dar voz às finalistas da 1ª edição da Women in Art Fellowship. A WAF nasce da colaboração entre o Freeport Lisboa Fashion Outlet, o Vila do Conde Porto Fashion Outlet, a Portugal Manual e a SOTA – State of the Art, e conta com a artista Joana Vasconcelos como madrinha da sua primeira edição.

Convidamos-te a acompanhar de perto este percurso: segue a WAF no Instagram e descobre mais sobre o trabalho de Vera Fonseka.

Sabe mais sobre a bolsa WAF neste artigo no blog.