Entrevista a Flávia Costa, finalista da WAF


Depois de conhecermos melhor o percurso de Ana Leça, Beatriz Narciso e Elizabeth Prentis, seguimos agora com a quarta entrevista da rubrica dedicada às finalistas da 1ª edição da Women in Art Fellowship (WAF). Hoje é a vez de Flávia Costa.


WAF — Podes contar-nos um pouco sobre ti e o teu percurso até ao momento?

Flávia Costa – Nasci e cresci em Roriz, uma numa aldeia do concelho de Barcelos. E onde continuo a viver, ainda que de modo intercalando, dividindo-me entre a aldeia e a cidade do Porto.

A minha infância foi passada muitos primos num contacto muito próximo com a terra, e por isso foi uma infância muito livre e de brincadeiras no exterior entre os campos, riachos passeios de bicicleta e a explorar muito a criatividade com as coisas que ia encontrando. 

Do lado materno os meus avos eram agricultores e do paterno eram artesãos cerâmicos, e por isso as minhas memórias mais fortes são os cheiros da erva cortada ou da terra húmida de ser regada, das cores das videiras na altura da vindima, da comichão das folhas do milho nos braços, de andar descalça e sentir as texturas das pedras. Do lado paterno é ainda muito presente a sensação e cheiro do barro molhado assim como das tintas (tintas de esmalte misturadas com diluente) e vibração das cores sempre muito luminosas (os meus avós pintavam peças tradicionais como galos de Barcelos e soquinhos de cerâmica), os gestos que repetiam ao pintá-los. 

Durante a minha infância os meus pais também se dedicaram à pintura de cerâmica, o que me fez ter um contacto muito próximo com tintas e pinceis, mas sobretudo com a liberdade de experimentar. Os meus pais sempre me deram muito espaço para “fazer coisas”, inventar, descobrir, apagar, repetir…

Esta liberdade teve um impacto enorme no meu crescimento contagiando-me com muita curiosidade e vontade de explorar a natureza dos materiais. Moldá-los, construir formas, dar-lhes outras funções. O que me levou a prosseguir estudos no campo das Artes Plásticas. O meu percurso académico foi feito na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Licenciei-me em Artes Plásticas ramo Pintura, e logo de seguida fiz o mestrado em Desenho e Técnicas de Impressão. É nesta altura que começo a conhecer mais sobre o Desenho e as práticas contemporâneas e a partir daí comecei a dedicar-me a estudo destes assuntos, desenho do espaço por apreensão fenomenológica, desenho performativo, desenho grande escala. Passados quatro anos e com muita vontade de aprofundar estudos regressei às Belas Artes para fazer o doutoramento em Artes Plásticas, na área Científica do Desenho. Na altura candidatei-me a uma bolsa de Doutoramento da FCT e consegui. A partir daí houve uma transformação gigantesca no meu percurso como artista e como pessoa.

Durante o tempo da Bolsa dediquei-me exclusivamente à prática e investigação no domínio do Desenho, desenvolvi estudos em Portugal e fora, na Finlândia (Helsínquia) e Espanha Bilbao (Universidade do País Vasco), tive a possibilidade de conhecer outros artistas e conversar com eles, de ver muitas exposições, passar dias em bibliotecas e em museus, ir a conferências atualizar-me sobre os assuntos em discussão e apresentar o meu trabalho. Tudo isto fez-me desenvolver competências técnicas e de pensamento crítico, o que por sua vez deu-me confiança para apresentar propostas de trabalhos mais audazes como a intervenção pública em Helsínquia. 

No decorrer do doutoramento foi-me dada a possibilidade de colaborar como docente das unidades curriculares de Desenho (UMINHO)e Estúdio de Desenho (FBAUP) e como investigadora num projeto de desenho DRAWinU (I2ads-FBAUP) (https://i2ads.up.pt/en/projetos/drawinu/). O que tem sido uma experiência muito enriquecedora e apaixonante.

Além disso, houve uma transformação pessoal muito grande. Isto traduziu-se num nível mais elevado de segurança e confiança no que faço, mas também num grau mais elevado de responsabilidade sobre o que quero fazer e o impacto que isso pode ter.

Foi nesta linha de pensamento que concorri à FAW, para ultrapassar o limite do contexto académico e conquistar mais espaço como artista revendo-me nas linhas da vossa proposta.

WAF — Qual foi o maior desafio que encontraste na tua carreira artística até agora e como o superaste?

Flávia Costa – É sempre um desafio viver numa cidades pequena com investimento cultural muito reduzido e muitas vezes monopolizado. O modo que encontrei para contornar essa situação foi tirar partido da mobilidade. Para isso procuro desenvolver projetos que me permitam ir para outros sítios e obriguem a sair daqui e ir descobrir outras geografias. No fundo é ser uma artista radicante.

Outro grande desafio é o exercício de malabarismo em equilibrar a paixão pela prática artística com a sustentabilidade financeira da carreira artística. Para esta situação a minha reposta tem sido procurar programas de residências artistas, concorrer a Bolsas de Produção artística ou propor Projetos, onde mesmo com orçamento pequenino, posso continuar a Desenhar.  Possibilidades que vão acontecendo em paralelo com a minha atividade como docente.

Mas talvez o maior e mais persistente desafio é tentar ter uma carreira artística. É difícil penetrar num universo cultural, que na grande maioria das vezes se fecha sobre si mesmo e é viciado. As verdadeiras e honestas oportunidades como esta são poucas. E por isso sinto-me muito honrada em a ter.

WAF — Que experiências consideras terem sido mais determinantes na tua evolução enquanto artista?

Flávia Costa – Ter conseguido uma Bolsa de Investigação de Doutoramento da Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT) foi muito importante. Foi um sonho tornado realidade.

Trouxe-me a oportunidade conhecer novos mundos. De desenvolver trabalho de investigação numa área que adoro, de trabalhar e aprender muito com pessoas (professores/ investigadores) muito competentes quer em Portugal quer nas escolas onde fui recebida (UPVH-Bilbao e Helsínquia), evoluir nas competências técnicas e académicas. Mas deu-me também a possibilidade de viajar, ver exposições, conhecer novos artistas, ler, escrever, conversar com outras pessoas, desenhar noutros lugares, falar sobre desenho. Viver outras experiências inimagináveis e voltar a transbordar de entusiasmo com muita de vontade de desenhar.

O meu doutoramento foram quatro anos de muita paixão e encantamento com tudo o que estava a aprender e a fazer. Fez-me quer fazer cada vez mais e melhor.

The fence Helsinki Follow me 002 Flávia Costa
Estudo para composição Mil Folhas 01; Mapa das arquiteturas descartáveis (andaimes) Bilbao; Flávia Costa; Bilbao (Es), 2019.

WAF — Quais são as tuas principais referências artísticas ou culturais?

Flávia Costa – Eu gosto muito de ser portuguesa e minhota. Sinto-me muito feliz quando olho para a minha infância e penso nas experiências terrenas e memórias sensoriais que tive. Culturalmente interessa-me abordar a perceção háptica, interessa-me auscultar os espaços para depois, artisticamente, contar as suas histórias. Interessa-me reparar nas coisas, olhar devagarinho e conversar com quem as vive de perto. Interessa-me o que cada pessoa tem a dizer sobre o espaço/lugar que estou a estudar, as peripécias vividas, os trocadilhos, as descrições ou desabafos. Mais do que qualquer mapa são estas informações que caracterizam os lugares e as pessoas. É recorrente, nos meus projetos, muitas desses comentários descomprometidos trocados em conversas aleatórias serem usados como títulos dos trabalhos como por exemplo a “A tenda quer-se com quem a entenda” ou “Bilbao está a ser maquiado” ou serem o ponto de partida para jogos retóricos que desencadeiam ensaios visuais, desenhos.

No geral as mulheres artistas são uma grande referência pela força/firmeza, mas também delicadeza com que abordam as questões com que trabalham. Identifico-me em particular com o discurso da Graça Morais quando fala da importância do sítio de onde nascemos e como isso define as nossas escolhas artísticas. Os materiais, os tipos de gestos, e a sensibilidade de ser mulher numa realidade tão agreste. Sinto-me honrada quando vejo a Joana Vasconcelos a elevar o nome de Portugal em vários pontos geográficos e quebrar barreiras ao expor em novos contextos expositivos. Ou quando leio as notícias sobre as obras da Vanessa Barragão.

De modo internacional revisito com muita frequência os Mestres Renascentistas Italianos quer pelos seus desenhos quer pelos modos de preparar a pintura, o uso dos pigmentos, os instrumentos de desenho, e as dinâmicas que tinham em ateliê. São sempre uma enorme referência na construção da harmonia compositiva e construção do Belo. Continuamos a querer e desejar fazer coisas bonitas. Eu quero.

Na contemporaneidade aprecio os artistas europeus que têm vindo a trabalhar com as questões práticas do desenho relacionado com preocupações socais e etnográficas, como Tatiana Trouvé, Tania Kovats (…) e tenho também andado a descobrir/estudar os artistas da américa latina, brasileiros e argentinos.

WAF — Que artistas, movimentos ou acontecimentos mais influenciaram a tua prática?

Flávia Costa – O doutoramento foi o momento mais marcante. Tive professores e orientadores inspiradores, como Paulo Almeida e Rita Gaspar Vieira, que me contagiaram pela paixão de pensar e fazer desenho. Também sigo de perto artistas portugueses como Diogo Pimentão, que desafia os limites do desenho em contextos conservadores.

WAF — Há alguma obra ou momento na tua vida que consideres ter sido um ponto de viragem criativo?

Flávia Costa – Sim, destaco dois. O primeiro foi em Helsínquia, onde desenvolvi obras in situ com grande impacto e delicadeza, recebendo excelente feedback. O segundo foi uma exposição coletiva em que percebi que o meu trabalho estava ao nível de artistas consagrados. Essa validação entre pares deu-me enorme motivação para continuar a arriscar e crescer.

WAF — O que te motiva a criar e a persistir no teu trabalho artístico?

Flávia Costa – Motiva-me a paixão pelo fazer, pela experimentação material e pela liberdade criativa. Gosto de sentir “borboletas na barriga” ao iniciar um projeto novo e de trabalhar a partir das experiências vividas nos espaços. Persisto porque acredito na pertinência do meu trabalho e na necessidade de mais vozes femininas na arte contemporânea. Quero contribuir para o reconhecimento do desenho, da arte e da cultura a partir dessa perspetiva.

WAF — Como defines o propósito do teu trabalho enquanto mulher nas artes?

Flávia Costa – Defino-o como uma forma de ativismo artístico pela sensibilidade feminina. Trabalho a partir da experiência corporal e sensorial em espaços transformados ou abandonados, reivindicando o direito à cidade e à criação de imagens sobre esses contextos. Mesmo sem abordar diretamente questões de género, acredito que o olhar feminino traz novas percepções, gestos e narrativas que são urgentes e necessárias na arte contemporânea.

WAF — Que mensagem ou reflexão pretendes transmitir com a tua obra?

Flávia Costa – Quero despertar atenção para pequenas percepções e criar empatia com o que nos rodeia. Os meus trabalhos têm um caráter ativista e refletem sobre os espaços em que me insiro, transmitindo cuidado e proximidade. Procuro que as obras sejam conceptualmente profundas, mas acessíveis, despertando curiosidade, reconhecimento e emoção. O importante é que o espectador sinta, questione e se conecte.

WAF — Como costumas organizar o teu processo criativo? Há algum método ou rotina que privilegias?

Flávia Costa – Começo com investigação in situ: observar, desenhar, recolher vestígios, sons e movimentos. Depois passo ao atelier, explorando materiais, pigmentos e referências teóricas. Por fim, foco-me na produção final, afinando escala, suporte e cores. Trabalho muito com papel, dobrando, modelando e criando tridimensionalidade, explorando limites do desenho e estratégias do hiperdesenho.

WAF — Que técnicas, materiais ou meios gostas mais de explorar na tua prática?

Flávia Costa – Meios próprios do desenho: papel e riscadores (grafites, cravões, pasteis secos, barra, pós e pigmentos). 

A minha prática foca-se no estudo das propriedades plásticas do papel. Testando como o posso dobrar, modelar extrapolando assim a superfície plana para conquistar uma certa tridimensionalidade. No sentido de questionar também os  limites do próprio suporte do desenho, um dos pontos mencionados no conceito de hiperdesenho, o que está para além do que é espectável que o desenho seja.Procura sempre trabalhar à escala do meu corpo e acontece muitas vezes trabalhar por módulos quando o trabalho ganha uma escala cenográfica. Sempre com papel.

Quanto aos riscadores tenho preferência por usar os riscadores mais democráticos possíveis como grafites em diferentes estados (lápis, mina, barra, pó), cravão vegetal (barra e pó) e pasteis secos. Levando ao limite as potencialidades da sua utilização. Do mesmo modo tenho vindo a explorar pigmentos produzidos a partir de elementos encontrados nos lugares, como pedaços de ferrugem que são moídos e transformados em pigmentos.


WAF — Que papel têm a colaboração ou a interdisciplinaridade no teu trabalho?

Flávia Costa – São fundamentais. O desenho é uma linguagem que pode ligar-se a muitas áreas. Um dos meus trabalhos recentes, Vetusto, nasceu de uma colaboração com a FEUP sobre degradação de edifícios, em que usei ferrugem como pigmento. A interdisciplinaridade enriquece a prática e abre novas possibilidades criativas.

WAF — De que forma esta bolsa poderá transformar ou impulsionar o teu percurso artístico?

Flávia Costa – Conseguir a bolsa WAF é transformador. Representa motivação, responsabilidade e tranquilidade financeira para me dedicar à prática. Tem sido uma experiência enriquecedora pela partilha entre artistas, pelas masterclasses e pelo apoio da equipa. Estou certa de que trará reconhecimento, projeção nacional e novas oportunidades.

WAF — Onde te vês daqui a cinco anos enquanto artista?


Flávia Costa – Vejo-me a desenhar bastante, a desenvolver projetos maiores, com exposições individuais em galerias e museus nacionais, e a continuar ligada ao ensino e à investigação artística.

Com esta quarta entrevista damos continuidade à série dedicada a dar voz às finalistas da 1ª edição da Women in Art Fellowship. A WAF nasce da colaboração entre o Freeport Lisboa Fashion Outlet, o Vila do Conde Porto Fashion Outlet, a Portugal Manual e a SOTA – State of the Art, e conta com a artista Joana Vasconcelos como madrinha da sua primeira edição.

Convidamos-te a acompanhar de perto este percurso: segue a WAF no Instagram e descobre mais sobre o trabalho de Flávia Costa.

Sabe mais sobre a bolsa WAF neste artigo no blog.