À conversa com Sofia Caldas

Sofia Caldas é chapeleira e especialista em chapéus de feltro, pequenos objetos que diz que comunicam com o mundo.

Todo o processo de criação dos chapéus, desde a construção dos moldes ao trabalho dos cones de feltro é manual e pode ser personalizado.Após uma formação no Hat Academy de Londres, sentiu necessidade de preservar a Arte da Chapelaria Tradicional através do seu cruzamento com as Artes Plásticas. Avo, um nome “de se lhe tirar o chapéu” que já trabalhou com estilistas portugueses e até “passou pela cabeça” de celebridades como a atriz Isabelle Huppert. Hoje, exporta para uma série de países.

PM – O que te inspira além do seu trabalho? Quais são seus hobbies ou interesses fora do campo criativo?

Sofia – Sempre fui muito atenta ao mundo que me rodeia. Gosto de olhar as pessoas e descobrir as suas características, gosto de ouvir histórias, daquelas cheias de descrições que me permitam imaginar tudo com muita nitidez. Tento prestar atenção ao que acontece diariamente à minha volta e acabo por construir narrativas, que existem só em mim, mas que depois partilho com os outros como se fossem contos. Gosto muito de escrever. Sobre a vida, sobre pequenas coisas, sobre as lições que me chegam das mais diversas formas.

PM – Qual é o teu lugar favorito para encontrar inspiração ou relaxar? Alguma paisagem ou ambiente que te inspire?

Sofia – O meu lugar favorito é o quintal dos meus pais, que foi o quintal do meu avô. Pisar o chão com
os pés descalços e ter o diospireiro ao lado como companhia. É a melhor sensação de um lugar seguro, mágico e onde não existe tempo. A Natureza inspira-me sempre porque está repleta de coisas a acontecer para onde quer que olhemos, mas depende daquilo que preciso receber. Um passeio numa rua muito movimentada, onde as pessoas se esbarram e movimentam freneticamente, pode igualmente trazer-me a inspiração que preciso. É mais ou menos como quando temos uma dor de cabeça e tomamos um Benuron, ou se nos dói as costas pomos um Voltaren. Se preciso esvaziar a mente e relaxar, a natureza faz-me bem; se preciso de ideias, tenho de levantar as pedras do caminho, levantar os olhos ou entrar num metro na hora de ponta, por exemplo.

PM – Tens alguma rotina matinal ou ritual que te ajuda a começar o dia com energia e criatividade?

Sofia – Há alguns anos atrás descobri que existe um fenómeno nas minhas manhãs ao acordar, ainda com a persiana meio fechada, a luz passa pelos buracos e projeta na parede do quarto o que sepassa lá fora. Às vezes dá para distinguir formas e até mesmo as cores. E muda sempre durante os meses do ano. Há meses que não se distingue bem, há meses que nem vejo imagens, apenas sou presenteada com salpicos de pontos e linhas de luz. O meu ritual acaba por ser o abrir os olhos e ver que imagem me foi “atribuída” nesse dia. Quase como aqueles que abrem o horóscopo diariamente.

PM – Existe alguma história especial por trás de uma das tuas criações? Podes contar-nos um pouco sobre ela?

Walking With The Bear foi o chapéu que mais me marcou até hoje. Foi um Personalizado, e não sabia nada da pessoa. Ele deixou ao meu critério fazer o que achasse bem para ele. A única coisa que referiu, foi que queria que fosse castanho e que gostava da pega metálica que eu tinha colocado num outro chapéu anterior. Quando isto acontece, eu faço uma pesquisa sobre a pessoa, e descobri uma imagem onde ele usava um boné com uma imagem de um urso. Descobri também uma ilustração que alguém fez para ele de um navio em que a tripulação eram ursos e o próprio navio se chamava Ursa. O tema formou-se ali, a cor do chapéu era castanha como o pelo do urso, a pega que ele gostava (do chapéu original chamado Hats Are Made for Walkin´) agora fazia todo o sentido que este se chamasse Walking With The Bear! Tudo o que fiz a seguir foi acontecendo e surgindo em mim como se já estivesse para ser assim. Tinha uma resina há muito tempo no atelier que não tinha usado ainda, com a cor de mel, derreti um pedaço em forma de pingo de mel e coloquei na lateral do chapéu. O mel é o deleite do urso, e este pingo lembrar-lhe-ia de aproveitar as pequenas coisas que lhe surgissem na sua vida. Dentro, no forro, bordei um Urso e por baixo do urso escrevi uma palavra onde falta a primeira letra. Instantaneamente e porque tem um urso bordado, podemos pensar que é BEAR, mas igualmente poderia ser HEAR. A mensagem poderia ser HEAR/ ouve o urso que há em ti. Ou quiçá FEAR.. Passei bastante tempo com aquele chapéu. E aquele urso olhou-me nos olhos durante muitos dias a fio. No dia que o entreguei estava entusiasmadíssima e feliz! Mas quando volto ao atelier, e vejo o seu lugar vazio com os restos de resina pela mesa, senti pela primeira vez uma enorme perda, a perda de algo de muito meu que seguiu o seu caminho. E senti um quase luto, profundamente dentro de mim, por um Urso… Lavei-me em lágrimas e refiz-me depois.Foi um episodio único e que se resume naquela frase “Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.” Antoine de Saint – Exupéry

PM – Se tivesses a oportunidade de colaborar com qualquer artista/escritor/designer do mundo, quem seria e por quê?

Gostava de ter feito um chapéu para o Fernando Pessoa e um para cada um dos seus heterónimos! E pelo chapéu que usasse na rua, lhe descobríssemos o tom que lhe vibrava por dentro. Temos artistas maravilhosos e variados à nossa volta! Às vezes vejo as peças da Iva Viana e imagino chapéus meus com as suas flores esculpidas no feltro. Sempre que olho para as fotografias da Diana Salomé podia fazer um chapéu por cada imagem dela! No ano passado vi uma peça de teatro, pela primeira vez com o Ruy de Carvalho, e quantas história saltariam de dentro de um chapéu dele! E bordadas a ouro, que é o sentimento do que bebemos dele e da sua gentileza em partilhar. Voando mais além, tenho um carinho e admiração pelo Stephen Jones e pela sua grande criatividade. Os chapéus dele conseguem ser aquilo que ele quiser. E isso agrada-me muito.

PM – Uma música?

Sofia – Nocturne op.9 No.2, de Chopin, cujo nome da música é também o nome de um dos meus chapéus.

PM – Um livro?

Sofia – L’Écume des Jours, de Boris Via

PM – Um filme?

Sofia – É um cliché, mas O Fabuloso destino de Amélie Poulain foi mais ou menos saber que não estava sozinha!

PM – Uma côr?

Sofia – Aprecio cores vibrantes e gosto de lhes sentir o pulsar, mas é no preto e no branco que me equilibro. Graças à Joana Maria Sousa (@imjoanamaria) a cor púrpura começou a perseguir-me e estranhamente faz-me bem!

PM – Um lugar|?

Sofia – Vou repetir o quintal dos pais e do avô. As raízes são tramadas!

PM- Uma pessoa?

Sofia – O meu avô Adriano.



PM – Uma peça tua?

Sofia – Chapéu para Caminhar Juntos.


PM – Uma peça de um colega?

Sofia – Os Homens não Choram, do Carlos Manuel Gonçalves, uma peça que me fez sorrir com o coração.



PM – Alguma experiência ou viagem que teve um impacto significativo no teu processo criativo? onde e porquê?

Sofia – Há muitos anos atrás, trabalhei com crianças com algumas dificuldades de aprendizagem. E tive experiências maravilhosas, bons ensinamentos da parte delas para mim, nomeadamente com uma criança autista e outra surda-muda. Confrontei-me com uma realidade que não existia em mim até então. Como me lembro muitas vezes desse tempo, uma das coisas com as quais me preocupo sempre, é a de fazer peças para todos. Que todos as possam sentir. Daí surgiu o Blind Hat (o chapéu cego), A Bailarina (com som), o uso de diferentes materiais e texturas e os chapéus com modelações feitos para serem tateados, que apelam aos vários sentidos. Posso dizer que essa experiência marca uma linha condutora, um princípio no meu trabalho desde sempre. Viajar faz-nos sempre crescer. De diferentes sítios, trazemos sempre na bagagem diferentes outras formas de ver. E isso dá-nos uma lufada de ar no processo criativo também.

PM – Quais são os teus métodos para lidar com o bloqueio criativo?

Sofia – Aceitar que tudo acontece no seu tempo.
Começar outra coisa e deixar o que nos bloqueia a marinar.

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